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04/07/2021

O despedaçar de pétalas: morte ou renascimento?

 

Por Renata Pinotti

Um convite à reflexão a partir da análise junguiana e da Constelação Familiar do conto “O Barba Azul”.


A psicóloga junguiana, Clarissa Pinkola Estés, descreve em seu livro “Mulheres que correm com os lobos”, o conto do Barba Azul, como a iniciação da mulher selvagem.

 

A expressão mulher selvagem nesse contexto representa a mulher em seu estado mais puro, conectada à sua essência, à sua psique instintiva mais profunda, à sabedoria e todo potencial criativo da alma1

 

Mulheres domesticadas para serem “boazinhas” foram condicionadas na infância a ignorar sua intuição, a não enxergar e não perceber o perigo. Por terem sido ensinadas a se submeter ao predador, elas crescem desconectadas de seus instintos, congeladas e paralisadas, como “virgens de olhos vidrados”, cegas à realidade.1.

 

Mulheres que ficam presas à essa dinâmica são ingênuas a respeito dos predadores, escolhem parceiros que são destrutivos à sua vida e tornam-se passivas a relacionamentos abusivos. Elas acreditam que podem “curar” aqueles que amam. Segundo a autora, esse script de “casamento com o predador” geralmente se molda antes dos 5 anos de idade1

 

O Barba Azul é o predador interno da psiquê da mulher. Ele reside dentro dela e, até que ela desperte novamente seus instintos e potencial selvagem, ele irá destruir os dons femininos de sua psiquê1

 

Homens identificados com esse arquétipo geralmente fracassaram em algum aspecto da sua vida. Eles reagem a essa imensa frustração destruindo os sonhos da mulher. Seu impulso inconsciente e instintivo é de destruir a mulher. Essa é a medicina deles.

 

Dependendo do grau de congelamento e paralisia da mulher, ela convida um Barba Azul para entrar em sua vida, pois ela precisa dessa medicina para descongelar. Esse movimento é inconsciente e movido pela alma, como um caminho de iniciação.  

 

Apenas algo rápido e forte demais pode destruir as consequências de algo que foi rápido e forte demais no passado. Precisa ser intenso para conseguir destruir as velhas estruturas internas, construídas como mecanismo de sobrevivência ao trauma. 

 

Só a intensidade consegue quebrar a redoma que a mulher estava presa, colocar seus pés de volta na terra e despertá-la do devaneio. 

 

Esses homens também procuram, inconscientemente, por essas mulheres.

 

Ambos se atraem mutuamente e um está a serviço do outro.

 

Em toda relação abusiva há ganhos secundários dos dois lados. São dinâmicas inconscientes movidas pelos aspectos sombrios que nos constituem. A presença de Thanatos no masculino e no feminino, no animus e na anima. O difícil é que a inconsciência não isenta nenhuma das partes da responsabilidade e das consequências de seus atos e escolhas, por vezes fatais.

 

O Barba Azul é muito inteligente e possui um poder hipnótico com as mulheres “boazinhas”. Ele acessa os pontos mais cegos da mulher e diz exatamente o que ela sonha ouvir. Ela se seduz pelas vantagens e prazeres do ego: a promessa de casamento com o príncipe no cavalo branco, a realização dos seus sonhos e fantasias sexuais, as facilidades materiais...E até a ideia de que pode salvar o homem. 

 

A promessa enganosa do predador é que a mulher será sua rainha, quando na verdade ele planeja aniquilar sua força e presença1.

 

De forma inconsciente, o predador interno da psiquê da mulher concorda com isso1.

 

Nos raros lapsos de lucidez a mulher enxerga que tem algo estranho, porém ela duvida de si e permanece cega, agarrada às promessas do seu companheiro e ao seu paraíso de ilusões. É como uma dependência química, em que o traficante é o Barba Azul1

 

Ela permanece na relação e se nega a enxergar por medo de ter que tomar uma atitude. Ela teme perder o “status quo”, como a estrutura financeira, a casa ou até a condição de ser casada.

 

Quando a mulher consegue ouvir as mulheres sábias que a aconselham, ela finalmente desperta de sua cegueira. Ela usa a chave da sua consciência e consegue enxergar a realidade.  Nesse momento, ela descobre que não foi a única e vê os cadáveres das mulheres anteriores que ele destruiu1

 

Ao se perceber descoberto, o Barba Azul reconhece a urgência de destrui-la! “Já não é mais minha bonequinha, meu brinquedo, minha marionete. Chegou a sua vez, ele diz”! Nessa hora, ela precisa correr e ser esperta para não morrer.  Ou sucumbir em promessas de que será diferente desta vez (e das próximas incontáveis vezes).

 

A mulher só consegue sair da relação e dessa dinâmica se desenvolve o aspecto masculino saudável em sua psiquê. 

 

No conto, quem ajuda a mulher são as irmãs mais velhas, o feminino sábio da psiquê. Elas se tornam seus olhos. Os irmãos, o masculino saudável da psiquê, representam a benção e a força de ação. Com essa benção a mulher consegue neutralizar o poder paralisante do predador em sua psiquê e substituir seus olhos vidrados por olhos que veem; podendo contar com um guerreiro de cada lado caso ela precise convocá-los1.

 

O ponto nevrálgico dessa dinâmica é que se a mulher não enxerga o perigo e permanece na relação, paralisada e cega; além de perder a oportunidade de se curar, ela continua a dinâmica e traz para dentro do relacionamento outras crianças e mulheres para serem destruídas pelo Barba Azul. A frase inconsciente nesses casos, segundo as descobertas de Bert Hellinger, é “morra no meu lugar” 2,3

 

No conto do Barba Azul a mãe da esposa ingênua é cúmplice, ela não recomenda nenhuma cautela à sua filha com relação ao predador. Estés afirma que a mãe também está adormecida, seja ela a mãe biológica ou a representação da mãe em sua psiquê1.  Essa observação nos permite refletir que essas dinâmicas podem ser transgeracionais.  

 

Um conto que também traz à luz essa dinâmica oculta é o da Chapeuzinho vermelho. A mãe manda a menina atravessar a floresta para levar alimentos à sua avó. Ela pede à filha que não saia do caminho, porém permite que ela passe pelo caminho perigoso4. 

 

Os filhos fazem de tudo para salvar seus pais e, por amor, geralmente se sacrificam de forma inocente. O amor da criança pelos pais é tão grande que ela acredita que ao morrer irá salvá-los2,3. Bert Hellinger observou em seu trabalho com a Constelação Familiar que a frase inconsciente das crianças para os pais é: “antes eu do que você”; “eu no seu lugar”2.

 

Um outro ponto que Bert Hellinger observou é que os casos de abuso e violência infantil geralmente envolvem 3 pessoas, não apenas a vítima e o perpetrador. A solução, muitas vezes, está na terceira pessoa oculta. 

 

Ao longo dos dez anos que estudo e trabalho com Constelação Familiar, observei essa dinâmica nos casos que atendi de abuso, estupro e violência com crianças; principalmente quando o perpetrador é alguém da família: pai, padrasto, avô, tio...

 

Já ouvi de algumas mães: “como eu não vi isso”! 

 

Já ouvi de várias filhas: “eu sinto mais raiva da minha mãe (que não protegeu) do que do meu pai (que foi o abusador)”.

 

A criança sempre sinaliza o que necessita e mostra o que está oculto através da fala, dos sintomas que manifesta, das brincadeiras, dos contos e filmes preferidos. Porém, elas raramente são ouvidas. A maioria dos pais banalizam ou até rejeitam o que elas dizem. Quando questionados, geralmente não sabem referir o que a criança pensa, fala ou sente. A grande maioria não acredita que a criança sente e percebe o que ocorre em casa.

 

A violência, os abusos e sacrifícios infantis ocorrem quando a criança não é vista, sentida, cuidada e protegida como precisa, como pequena.

 

Quando os pais estão presos em suas dinâmicas de forma inconsciente eles não conseguem enxergar além de si, de suas próprias dores e questões. Eles estão tomados por suas dinâmicas infantis, como um transe, e não veem a criança.  

 

Infelizmente, esses casos ainda são comuns em todas as raças, credos e classes sociais. 

Eles são muito difíceis, polêmicos e incitam sentimentos primitivos em toda população.

 

É bem difícil não sermos fisgados por essas dinâmicas, pois esse oculto também reside em nós. Arrisco-me a dizer que toda família, em alguma geração, possui alguma história oculta dessa ordem. A indignação desvela o pavor que todos têm de terem suas partes ocultas descobertas.

 

Precisamos nos distanciar de todo e qualquer julgamento para conseguirmos enxergar com clareza e ajudar nesses casos. “É preciso espaço para examinar a questão”5.

 

Um olhar distanciado e não passional traz lucidez para que a verdade venha à tona e os olhos suportem enxergá-la sem virar o rosto. “Só consegue ver aquele que tiver a paciência de manter-se firme até o ponto em que o que estiver oculto se mostre, espontaneamente, camada por camada”6.

 

A partir desse lugar o que estava oculto se desvela e a justiça divina emerge. Por mais difíceis que sejam as consequências para todos os envolvidos, a alma fica em paz.

 

As tragédias humanas são como efeito borboleta de atos inconscientes e egóicos da humanidade. Elas atuam como despertadores e chacoalham os seres humanos para que despertem do sonho que acreditam ser a realidade.

 

Um crime que comove multidões tem o poder de desvelar, despertar e liberar muitos dessas prisões psíquicas que ainda assolam a humanidade. 

 

A dor e as dificuldades são inerentes aos seres humanos. O ponto não é ansiar pela ausência de problemas e sim tomar consciência deles. Pais conscientes de suas dificuldades são responsáveis por elas, conseguem separar a relação de casal da relação de pai e filho, consequentemente, enxergam, ouvem e responsivos às necessidades das crianças.

 


Renata Pinotti Alves 

Facilitadora em Constelação Familiar

Nutricionista materno-infantil 

Doula, Tutora estadual do método Cangurú 

Idealizadora do trabalho “mulher fonte de amor & nutrição”.

Autora do livro: Guia do bebê e da criança com alergia ao leite de vaca.

Organizadora, junto com Glauce H Yonamine, do livro Alergia Alimentar: alimentação, nutrição e terapia nutricional.

www.alegriaalimentar.com 

@alegria_alimentar

Canal do Youtube: Alegria Alimentar - Renata Pinotti

contato@alegriaalimentar.com 

Consultório: (17) 99660 7878


Referências bibliográficas: 


O despedaçar de pétalas: morte ou renascimento? Publicado em 12 de maio de 2021:  https://www.youtube.com/watch?v=nWFO3bZ4Wx8


1-         Estés CP. Mulheres que correm com os lobos. Mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. 627p.

2-         Hellinger B. O amor do espírito na Hellinger Sciencia. 3 ed. Belo Horizonte: Atman, 2015. 224p.

3-         Hellinger B. Olhando para a alma das crianças.   Belo Horizonte: Atman, 2015. 288p.

4-         Schneider J, Gross B. Ah! Que bom que eu sei! A visão sistêmica dos contos de fadas.

5-         Mooji. O sopro do absoluto. São Paulo: Presencia, 2013. 224p.

6-         Hellinger B. Liberados somos concluídos. 2 ed. Gioania: Atman, 2012. 168p.

7-         Migliari D. Abraço à sombra. Encontros que acolhem e iluminam a infância espiritual. 2 ed. Tagore, 2018.

8-         Chopra D, Ford D, Williamson M. O efeito sombra. Encontre o poder escondido na sua verdade. LeYa, 2012.

9-         Jung E. Animus e Anima. Uma introdução à psicologia analítica sobre os arquétipos do masculino e feminino inconscientes. Cultrix, 2006.

10-       Schubert R. O conceito de script de vida. (in) Blog A Constelação Familiar:   http://aconstelaçaofamiliar.blospot.com2015/08/o-conceito-script-de-vida.html?m=1

11-       Clemente M. Barba Azul – histórias que atuam, do conto de fadas preferido à Constelação Familiar. Instagram: manika_constelandocomafonte.

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